O TRANSBARROCO CEARENSE

Jackson Araujo
8 min readMar 13, 2023

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EXPOSIÇÃO APREENDE O REAL SEM SEPARÁ-LO DO SIMBÓLICO

Da esq. para dir.: FOTO 1 | escultura "Mole", de Érico Gondim; banco "Jeri", de Bruno Camarotti; look de Hipólito Marinho; FOTO 2 | banco "Jeri", de Bruno Camarotti; FOTO 3 | traje de Reisado de Mestre Tarcísio (Juazeiro do Norte-CE)

A convite de Rodrigo Costa Lima, diretor do Centro de Design do Ceará, um equipamento da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, gerido em parceria com o Instituto Mirante, eu e Jacqueline Medeiros assumimos as rédeas da curadoria da exposição TEMPO PRESENTE EM NÓS, que marca a inauguração desse importante espaço cultural em Fortaleza, em cartaz até o final de abril de 2023.

O ponto de partida foi ampliar o reconhecimento das soluções técnicas dos povos originários, de artistas populares do sertão ao litoral, incorporados ao design cearense. E sempre, obviamente, buscar um link emocional e afetivo com as gerações que já conheciam e experimentaram certos objetos expostos, assim como despertar nas novas gerações a curiosidade sobre peças não mais usuais no cotidiano contemporâneo.

Visão geral da exposição TEMPO PRESENTE EM NÓS, em cartaz no Centro de Design do Ceará, com curadoria de Jacqueline Medeiros e Jackson Araujo, em cartaz até o final de abril em Fortaleza.

Não nos prendemos nesse ou naquele nome menos ou mais importante na história do design do Ceará. Todos os designers, artistas e artesãos expostos são, para nossa curadoria, de extrema importância na construção dessa história do design do Ceará, que não se propõe ali a ser completa diante de um universo infinito de possibilidades de conceitos ligados ao design.

Nossa curadoria quer ser uma abertura de diálogo com a sociedade civil, com os criativos, escolas, estudantes, mestres e mestras, para que o espaço do Centro de Design seja cada vez mais ocupado por mergulhos específicos em nossa história, nossos objetos, saberes e na experiência coletiva que coloca a vida como campo de experimentações.

Da esq. para dir.: FOTO 1 | bustos em barro de Ivanildo Nunes com golas de renda de bilro manufaturadas em linha fina pelas artesãs da comunidade da Praia de Maceió (Itapipoca- CE) e da Comunidade da Prainha (Aquiraz-CE); FOTO 2 | núcleo "Oh de casa!", com elementos de palha, lata, alumínio e madeira, uma vitrine das inventividades do designer cearense de diferentes épocas e utilidades.

Nessa perspectiva, ter uma colher de pau de autoria anônima com toda a sua potência de tecnologia ancestral ao lado da "Mesa Pote", um objeto utilitário de barro com acessórios USB, de Marcus Braga, por exemplo, só fortalece a nossa ideia de atuar cada vez mais no sentido de uma decolonização do design, colocando em pé de igualdade criações que soam díspares em suas autorias, mas que se conectam exatamente pela potência de salientar em suas estruturas

"o mesmo espírito mestiço do barroco brasileiro, na complexidade ainda maior da civilização sertânica (índia, negra, branca, mediterrânea, magrebina) — enquanto transfiguração das heranças culturais que atravessam os séculos […] aquilo que Ariano Suassuna chamava de 'ousadia da cor' […] a grande expressão do barroco popular"(CARIRY, 2019, p.34).

A força das guias de candomblé, de Jorge Dias.

Não chamamos de joias, por exemplo, somente as peças construídas em metais nobres, mas entendemos a força das miçangas nas guias de candomblé de Jorge Dias, das sementes sazonais que decoram colares indígenas de Ana Clécia Pitaguary ou mesmo o uso de espinhos de mandacaru por Antônio Rabelo como materiais nobres, porque caros às realidades culturais de seus autores.

Sobre Transbarroco, adota-se aqui a compreensão de um "conceito amplo, construído por alguns pensadores latino-americanos, no perpassar do tempo" (CARIRY, 2019, p. 32), como escreve Haroldo de Campos citando "A expressão americana", de José Lezama Lima (1988), e "O espelho enterrado", de Carlos Fuentes (2001).

"O grande poeta e romancista cubano José Lezama Lima, em ensaio famoso, definiu o barroco americano como 'arte da contraconquista'. A concepção de Lezama foi, recentemente, retomada em suas implicações por Carlos Fuentes, em 'O espelho enterrado': 'o barroco é uma arte de deslocamentos, semelhante a um espelho em que, constantemente, podemos ver a nossa identidade em mudança. […] Para nossos maiores artistas, a diversidade cultural, longe de ser um embaraço, transformou-se na própria fonte da criatividade".

Da esq. para a dir.: FOTO 1 | Top em trama de cestaria com barbante de algodão de Lino Villaventura; FOTO 2 | ao fundo vestido "Volpi", de Beatriz Castro; poltrona "Ubá", laranja, de Igor Sabá; banco de Cícero Ferreira (Juazeiro do Norte) e cadeira "Cacto", de Marcus Braga, Celina Hissa e Ney Filho.

Mais importante do que o nome da estilista Beatriz Castro são as histórias que podem ser contadas por meio das centenas de bandeirinhas de fitas de cetim que compõem seu vestido Volpi. Mais importante do que o nome de Lino Villaventura é a relação que se estabelece entre as tramas em barbante de algodão de sua peça exposta com as cestas de cipó usadas para o transporte de tantas histórias que alimentam a vida do povo sertanejo.

Da esq. para a dir.: FOTO 1 | bolsa "Basket Jirau", de Catarina Mina, feita por artesãs do projeto Ará; FOTO 2 | poltrona "Caré", de Leo Ferreiro; FOTO 3 | núcleo "Do mar", com elementos utulizados na pesca tradicional q ue fazem uso da técnica de trançados em palha, cipó e gravetos.

Mais importante do que a bolsa "Basket Jirau", da designer Celina Hissa/Catarina Mina é a relação que ela mantém com artesãs e artesãos de palha bebendo da fonte das jangadas, como a poltrona "Caré", de Leo Ferreiro, completas em suas narrativas verdadeiras de ativismo da beleza.

Tão importante quanto uma panela de barro de Dona Socorro Pitaguary é a roupa do designer indígena Rodrigo Tremembé, porque o valor de ambas as peças está no reconhecimento do aldeamento como estratégia estética na construção de um design que celebre a vida dos povos originários em um futuro livre do racismo ambiental e racial. Do mar ao sertão.

Da esq. para a dir.: FOTO 1 | roupa do designer indígena Rodrigo Tremembé; look "Vaqueiro Contemporâneo", do coletivo Cariri Visceral, feito em renda de Alexandre Heberte e couro de Seu Espedito Seleiro; fotos da Missa do Vaqueiro de autoria não identificada, acervo histórico do Banco do Nordeste; FOTO 3 | cocares de Ana Clécia Pitaguary (Pacatauba — CE) e Antonizete índia (Sobradinho Tapeba).

Tão importante quanto os arabescos que compõem uma peça do sertão barroco de Seu Espedito Seleiro está o reconhecimento das tecnologias dos povos afrodiaspóricos aplicada na serralheria dos portões tradicionais do casario em extinção da uma Fortaleza que não existe mais e que traz a Sankofa, um símbolo do sistema de escrita africano Adinkra, cujo significado pode servir como fio condutor de nossa proposta curatorial: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”.

Da esq. para a dir., de cima para baixo: FOTO 1 | sankofa no portão de metal ao fundo, autoria não identificada; FOTO 2 e FOTO 3 ""Sankofa nos Metais", de Lipe da Silva.

"Com essa elaboração e tradução estético-identitária e comunitária do povo sobre essa herança constitutiva mesclada da cultura mais ampla, inventa-se um transbarroco mestiço, transnacional, multicultural, inquietando-se nas dobras da pós-modernidade" (CARIRY, 2019, p. 34).

A exposição é composta de muitas camadas e em cada delas há muitas histórias. Acredito que fizemos uma seleção pautada pela simplicidade. Há muitas soluções descomplicadas para problemas complexos, que passam pela ressignificação de materiais que se tornam utilitários num contexto de escassez financeira.

Eu particularmente tenho paixão por tudo o que é feito com reuso de latas de óleo, querosene, sardinha… Os brinquedos, as lamparinas, os raladores, os utilitários domésticos, invenções lúdicas repletas de simplicidade e praticidade.

Da esq. para a dir.: FOTO 1 | "Careta de Jardim", de Érico Gondim; FOTO 2 | “Manto do Guerreiro”, de Ruth Aragão e Deyvison Freitas; FOTO 3 | look em crochê blocado de David Lee.

Tenho particular simpatia pelas peças do designer Érico Gondim, um multiartista que admiro pela capacidade de invenção e construção colaborativa junto a grupos de artesãs e artesãos, como pode ser visto em na escultura "Mole" feita em palha, lúdica, poética e sexy, no inusitado banco "Etá", feito com vassouras, ou na máscara "Careta do Jardim", em patchwork e crochê realizada em colaboração com costureiras do município de Jardim, no Cariri cearense.

Também gosto muito das provocações implícitas no look proposto em 1993 pelo estilista Hipólito Marinho, composto por um top de baladeira e uma crinolina de gaiola, que ao ser irônico e político, questiona a moda enquanto armadura para o corpo feminino, antecipando questões relacionadas aos movimentos de liberdade e quebra de padrões estéticos na contemporaneidade.

De expressão no fundo da sala de exposição, recomendo observação atenta ao “Manto do Guerreiro”, de Ruth Aragão e Deyvison Freitas, uma aparição flutuando no ar como uma imagem barroca de uma santa, desenhando volumes feitos com restos de tecidos e não-tecidos.

“Em suma, uma forma livre e complexa de apreender o real, sem nunca separá-lo do aspecto simbólico, do mítico, e do imaginário da cultura estudada, ou da pessoa inserida nesse universo cultural e social, envolvida em sua dualidade razão-paixão e em seus véus e contradições. Isso significa aceitar uma abordagem da realidade ordinária que leva em conta uma arqueologia do imaginário — naquilo que, para além do real e das suas formas de apreensões, pode ser percebida no simbólico e no mundo imaginário das pessoas situadas em determinadas culturas e em determinadas ‘dobras’ do tempo” (CARIRY, 2019, p. 33).

"Oxumaré", "Oyá"e "Oxum", tríptico bordado de Germanno Santos.

Indico ainda os crochês blocados de David Lee, os bordados de Germanno Santos e da Comunidade Quilombola de Alto Alegre, cada um à sua maneira tecendo parte dessa nova tecitura social diversa que compõe o Ceará e o Brasil.

Da esq. para a dir.: FOTO 1 | bordado "Porque Cazuza resistiu, resistimos também", de Maria Alice da Silva, da Comunidade Quilombola de Alto Alegre (Horizonte — CE); FOTO 2 | "Pouso", de Bárbara Moura, projeto desenvolvido com náilon de pipa de Kitesurf durante a vivência criativa Trama Afetiva, com top e short de Jorge Feitosa, designer-tutor do mesmo projeto.

E por fim, mas não menos importante, a peça “Pouso”, criada por Bárbara Moura, em náilon de pipa de kitesurfe, durante sua residência artística no festival Trama Afetiva — Novos Ventos, que funcionou como um esquenta para a inauguração oficial do Centro de Design do Ceará, em dezembro de 2022. Veja como foi no video abaixo.

Texto curatorial de apresentação da exposição:

TEMPO PRESENTE EM NÓS
A presente exposição é antes de tudo, o início de um mapeamento, ainda sintético, do que consideramos o design cearense a partir dos conceitos da arquiteta e design industrial Lina Bo Bardi. Nesse sentido o objetivo é ampliar o reconhecimento das soluções técnicas dos povos originários, dos artistas “populares” do sertão ao litoral, incorporados ao design cearense.

Parte-se do fazer ancestral como o principal saber do design e suas referências contidas no mercado criativo cearense. Propõe-se o Ceará e, por extensão a região Nordeste, como centro do design brasileiro. Considera-se que não é tempo de hegemonia para aqueles que resistem à interiorização do design ou sequer reconhecem a existência do design a partir das soluções criativas populares.

Segundo Lina, italiana de origem e brasileira por escolha, o Design Brasileiro é uma produção popular que representa o encontro com uma “arte pura”, menos influenciada pelos interesses econômicos e por ditaduras estéticas alheias ao lugar.

Busca-se aqui conexão entre passado e presente para a construção de um futuro melhor em sua circularidade de atuação. É o exercício do design que se quer decolonial, regenerativo, ecoeficiente, circular, afetivo e ancestral, proporcionando um pensamento crítico a partir do Ceará. Um design político, portanto!

TEMPO PRESENTE EM NÓS: design, memória e inovação, exposição inaugural do Centro de Design do Ceará, não se propõe ser completa diante de um universo infinito de possibilidades de conceitos ligados ao design. Deverá se desdobrar em muitas outras exposições onde cada segmento requer um mergulho específico em nossa história, por meio objetos e saberes presentes em Nós, na experiência coletiva, ou seja, na vida como lugar de experimentações.

Jacqueline Medeiros e Jackson Araujo
Curadores

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