O TEMPO SEGUNDO GUADAGNINO
"Call Me By Your Name" convida a uma reflexão urgente sobre o presente

“Call Me By Your Name” é o filme sensação do Oscar 2018. Virou febre no Youtube, Instagram, Facebook e vem cumprindo seu papel de disseminar o amor em tempos tão difíceis. Se fosse só esse o seu mérito, já bastava em sua completude. Mas há tanto a dizer sobre a obra-prima de Luca Guadagnino, que novas anotações e detalhes surgem recuperados na memória ou nas inúmeras imagens e entrevistas que pipocam nas redes.
O filme adaptado pelo magistral James Ivory a partir do livro homônimo do escritor egípcio André Aciman — trazendo os bromantics Timothée Chalamet (o mais jovem no prêmio de Melhor Ator do Oscar 2018) e Armie Hammer, respectivamente Elio & Oliver como protagonistas dessa aventura poética em um verão italiano nos idos 1983 — , fala muito mais do que somente a descoberta do amor e de sua impossibilidade infinita. A obra-prima fala do tempo. De um tempo que não mais existe. Do tempo que sem saber, passaria tão rápido, deixando marcas indeléveis em nossas memórias, que andam tão apagadas nesses tempos de hiperconexão, redes sociais, aplicativos e afins.
#CMBYN acontece num tempo em que o walkman ou o orelhão de ficha estavam entre as tecnologias mais acessíveis. Esse recorte já de cara nos coloca diante da possibilidade de contemplação, do passar das horas, lentamente, como voyeurs observando a natureza, sentindo o aroma das flores.
“O cheiro de alecrim nos dias mais quentes até o frenético chocalho das cigarras à tarde”.
A VOZ DAS COISAS
Tudo no filme fala. A casa e suas memórias, os slides, os livros, o piano, o mobiliário e janelas — símbolo de receptividade —, por onde Elio vê pela primeira vez o gigante americano Oliver chegar.
Quem viveu seus primeiros rompantes amorosos e sexuais nos anos 1980, lembra bem quantas paixões de verão, férias e de outros carnavais se esvaneceram pra sempre depois das despedidas. Não havia celular, não havia WhatsApp. O adeus pra sempre só poderia ser interrompido por um “até logo” se cartas e cartões postais fossem enviados sem a certeza do recebimento nem tampouco da resposta.
É sobre esse tempo que fala o filme. Do tempo em que viver o presente sem ter a certeza do depois era uma condição a ser vivida na pele do aqui e agora. Sem likes ou DMs. Mas não sejamos nostálgicos! Como bem frisa o diretor e roteirista Hilton Lacerda, criador do inesquecível "Tatuagem", película irretocável sobre a transgressão e o desbunde no Brasil de 1978: "Ali — no passado — não está a saída, mas talvez uma pista a ser seguida como em um mapa. Cabe a leitura daquilo que passou e que nos serve como lastro de direção".
O filme também não é somente sobre a descoberta de um amor homoerótico. É sobre a experiência da entrega sem medos, colocando inocência e pureza a favor de um amor que extrapola qualquer condição de gênero. É verdade que para nós, homens gays, pode até ser mais tocante, mas a beleza da descoberta da paixão é por vezes tão dolorida que há quem prefira deixar para os outros, os românticos e os sentimentais, o mérito de vivê-la. Sejamos empáticos, vai...
Para a nossa geração, aquele tempo era também um tempo pré-Aids, onde os corpos na transição da década anterior ainda circulavam livres para experimentar novas possibilidades, sem a repressão e o medo que veio depois com a disseminação do “câncer gay”, construindo barreiras muitas vezes intransponíveis e separações eternamente dolorosas, traduzindo a morte e a finitude tão bem representadas pelos cortes bruscos, que no filme de Guadagnino constroem inesperadas elipses de tempo em que tudo é vida, pulsante beleza e vigor.
Ah, o café da manhã, o ovo — a umidade feminina, o esperma masculino, a ideia de sol, de nascimento, descobertas e de ciclos — jogos de vôlei, violão, piano, banhos de piscina, bicicleta, sol, amigos e música. Muita música.
O SOM DO SILÊNCIO
E é aí que a emoção maior reside. Na trilha sonora, compondo cada quadro fotográfico como uma pintura, tão perfeita e sublime que faz ecoar nos ouvidos até mesmo os diálogos não ditos de Elio & Oliver.
Em “Words”, por exemplo, hit mela-cueca de F.R. David — “Words don’t come easy to me / How can I find a way to make you see I love you / Words don’t come easy” — presencia-se a tradução mais simples e direta de tudo aquilo que foi sendo guardado durante o longo silêncio provocador de boa parte do tesão sempre prestes a explodir, até culminar na antológica cena da punheta com o suculento e erótico pêssego, construindo uma das imagens mais comentadas na web.
A fruta — que traz em seu histórico emblemático a pureza, a fidelidade e a virgindade — invade as redes em seu formato emoji. Na linguagem da web, o pêssego pode representar uma bunda ou mesmo uma glande, atualizando a força erótica do ovo cozido de “O Império dos Sentidos” ou da manteiga de “O Último Tango em Paris”. Pura objetificação do prazer .
Ainda sobre as músicas, o que dizer da delicadeza da canção original composta e interpretada por Sufjan Stevens, “Mistery Of Love” (indicada ao Oscar de Melhor Canção)? Traz o sussurro do vento naquelas madrugadas quentes de um sexo avassalador.
Oh, to see without my eyes
The first time that you kissed me
Boundless by the time I cried
I built your walls around me
E ainda, a igualmente poética “Visions Of Gideon”, que delicadamente aquece o inverno final de Elio na frente da lareira enquanto uma surpreendente (!) mosca solitária passeia na cena, pousando em sua camisa de grafismo new wave. A mosca pode provocar asco em muita gente, mas — pasmem! — pode também simbolizar a solidariedade, já que no reino dos pequenos insetos a união faz a força e um inseto sozinho traduz a fragilidade do corpo sucumbido pela falta de defesa. Soa ainda como uma delicada lembrança do verão — no inverno as moscas desaparecem — , já que a presença inusitada do inseto pontua todo filme: há imperfeição na beleza, no amor e na vida que segue.
Paixão numa pista de dança é libertador, não? E assim, nada mais icônico nessa história de amor do que o momento em que o desajeitado Oliver dança ao som de “Love My Way”, do antológico Psychedelic Furs, enquanto Elio desliza sua coreô engraçada e sedutora ao som do refrão que mais uma vez traduz o silêncio desse amor em construção. “Love my way it’s a new road / I follow where my mind goes”. O curioso é imaginar que esse momento despretensioso de dancinha foi filmada em silêncio, sem que o casting soubesse qual seria a trilha sonora a ser aplicada na cena.
A DOR E O PRAZER
Tudo isso ainda é pouco para falar sobre os silenciosos momentos de contemplação na paradisíaca Crema, lugar onde Guadagnino ambientou sua trupe para construir em milimétricos detalhes um verdadeiro tratado sobre a beleza. A mesma beleza das esculturas greco-romanas que move o discurso do professor Perlman, pai de Elio, em suas orientações ao atento Oliver.
Como bom adepto do hedonismo do filósofo grego Epicuro, Mr. Perlman ensina que "pode-se escapar da dor por meio da lembrança dos prazeres passados ou pela expectativa de prazeres futuros, considerando a contemplação intelectual e a amizade os mais elevados prazeres e ensinando que o homem escapa da dor por meio de suas recordações e esperanças".
Tu, que não és senhor do teu amanhã, não adies o momento de gozar o prazer possível! Consumimos nossa vida a esperar e morremos empenhados nessa espera do prazer. (Epicuro)
E assim acontece o momento mais importante do filme: a cena do diálogo de Elio com Mr. Perlman, interpretado por Michael Stuhlbarg. É como se todo o roteiro fosse construído para aquele momento tão especial, surpreendente e — por que não — transgressor.
“OS NOSSOS CORAÇÕES E OS NOSSOS CORPOS NOS SÃO DADOS APENAS UMA VEZ. A MAIORIA DE NÓS NÃO CONSEGUE EVITAR VIVER COMO SE DE DUAS VIDAS SE TRATASSE. UMA A MAQUETE, OUTRA A VERSÃO FINAL, COM TODAS AS OUTRAS VERSÕES PELO MEIO. MAS HÁ APENAS UMA E, ANTES QUE NOS APERCEBAMOS, O CORAÇÃO FICA EXAUSTO. E O CORPO CHEGA A UM PONTO EM QUE NINGUÉM OLHA PARA ELE, QUANTO MAIS QUERER DELE SE APROXIMAR… NESTE MOMENTO HÁ TRISTEZA. NÃO INVEJO A DOR. MAS INVEJO A DOR QUE VOCÊ ESTÁ SENTINDO”.
Ah, o tempo…