COMO VAI VOCÊ, GERAÇÃO 2000?
O DESFILE DA AMAPÔ É DE GRANDE REFLEXÃO PARA O MOMENTO
Nunca essa pergunta pareceu tão pertinente quanto agora, em que a saudade de um tempo não vivido, faz com que as atuais hordas juvenis se dediquem a criar uma infinidade de hashtags para movimentar a falada “rede vizinha”, sinalizando tendencinhas comportamentais que muito tem a ver com aparência e muito-pouco-quase-nada com essência. #Y2K que se chama agora, né?
Pois bem. É nesse contexto volátil e superficial que aciono a pergunta-título, inspirada na indagação formulada em tom casual pelos curadores Marcus de Lontra Costa, Paulo Roberto Leal e Sandra Magger, em 1984, para batizar a exposição que referendou toda uma época nas artes visuais brasileiras, tendo como palco a Escola de Artes Visuais do Parque Laje, no Jardim Botânico do Rio. “Como vai você, Geração 80?”.
Aqui, a atualização da década na pergunta, diz respeito a uma geração de novos designers surgidos no contexto paulistano dos anos 2000, rompendo com a estética minimalista belga tão bem copiada nas passarelas locais.
Foi nesse contexto 2000 que a moda paulistana viu surgir a Amapô, de Pitty Taliani e Carô Gold, muito mais disposta a criar roupas com a cara de sua turma de amizades do que propriamente pensando somente em vender. Afinal é dessa atmosfera nefelibata que se constitui a juventude, sempre munida de coragem para se jogar no abismo criativo sem nem querer saber se haverá um anzol para içá-la de volta.
Com Pitty e Carô não foi diferente, ainda que no meio de toda liberdade criativa sem freios e coragem para colocar em cena o inesperado, a dupla tenha construído a calça jeans boca de sino e cintura alta mais desejada e copiada da história do jeans feito no Brasil, a famosa calça “empina bumbum”, bem ao habitual bom-humor da dupla.
Cada desfile sempre foi como uma escola de samba entrando na passarela: enredo, comissão de frente, trilha sonora, roupas-fantasias, óculos-alegorias, estampas-carro alegóricos… Tudo disparando um frisson na plateia que ao final aplaudia o show como se não houvesse amanhã. 10, nota 10.
Talvez o sinônimo de Amapô seja arrebatamento profano, um estado profundo de êxtase movido pela energia underground do coletivo de amizades que sempre apoiou, colaborou e inspirou Pitty e Carô.
Amapô nunca foi uma marca de moda. Sempre foi uma plataforma de experimentações artísticas. Como na famosa exposição de 1984 já citada, em Pitty e Carô está tudo aí pra quem quiser ver: “todas as cores, todas as formas, quadrados, transparências, matéria, massa pintada, massa humana, suor, […] radicais e liberais, transvanguarda, punks, pós-modernos, neo-expressionistas…”.
Diferentemente das modas dos anos 1990, que se movimentavam no sentido de dar ao estilista o poder do empresário dono do mundo, jovens artistas da moda da geração de Pitty e Carô investiam no presente, no prazer, nos materiais experimentais, realizando suas obras vestíveis sem a preocupação da aprovação da crítica de moda, nem almejando uma fama vindoura.
Coincidentemente, ou não, muitas, ou quase todas as pessoas da Geração 2000 na moda partiram para as artes visuais em seus múltiplos interesses de linguagens, suportes e experimentações. É verdade que quase ninguém dessa geração seguiu nas modas e chegou a enfrentar o mundo pandêmico, modificado irrestritamente em suas formas de amar, consumir, viver e vestir.
Mas é dessa matéria-prima da resistência que Pitty e Carô sempre se alimentaram. O humor, a vida social e o interesse pelo poder narrativo das imagens são assinaturas de seu trabalho. A ressignificação do artesanato, da costura e das modelagens muito amplas ou justíssimas atestam seu estilo libertário. Ou seria libertino? Chama atenção também a diversidade de materiais utilizados, lantejoulas, acrílicos, índigos e tudo o mais que puder transmitir um astral neopop, iridescente, escultórico, quase 3D bem antes da AI.
E é com esse firmamento que a dupla constrói seu novo enredo: uma história de amor feita das memórias que povoam com cheiros e maneiras um guarda-roupa, acervo e arquivo vivo de toda sua geração.
Por entre as araras que desenham essa espécie de auto-homenagem, há a homenagem a muitos nomes que são impossíveis de listar, mas que ecoam como as doces notas de uma sinfonia de amor: Jamal, Liana, Fabio, Juliana, Leandro, Dudu, Kleber, Vanessa, Eli, Carla, Rita, André…
E pra quem acha que a Geração 2000 não passa de uma hashtag, atenção bichas, lésbicas, não-bináries, senhoras, senhores, gente CIS e travestis! O desfile-performance da Amapô no ambiente da Love Story entra para a história das modas brasileiras contemporâneas como um marco significativo de uma nova atitude: a reedição modificada de seus principais looks. De grande impacto e reflexão para o momento.