AMOR EM TEMPOS DE COVID

Jackson Araujo
4 min readOct 16, 2021

A NOVA MÚSICA ROMÂNTICA DESMONTA A JOVEM GUARDA E SE POSICIONA NO CAMPO DE BATALHA POR UM BRASIL IGUALITÁRIO

A cantora paraense Aíla em foto de divulgação de seu álbum seminal "Sentimental"| FOTO JR Franch

Quando Gabriel Garcia Marquez nos presenteou com “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985), saboreando o realismo mágico ou realismo fantástico, que teve início no começo do século 20 caracterizado pela união do mundo mágico/fantástico com o real, em que seres irreais são considerados verdadeiros e habituais, nem imaginávamos que um dia (hoje!) aprenderíamos que sim, os encantados vivem entre nós. Afinal, como nos ensina o mestre Ailton Krenak: “Você não é dono da vida, você faz parte dela”. Essa, a frase que me segurou em tempos de tantas mortes, lutos não vividos e despedidas não realizadas.

Ainda no contexto de Garcia Marquez, “o tempo não é linear, mas cíclico e distorcido, o que permite ao escritor abordar a verdade por vários ângulos, seja do ponto de vista factual, ou do temporal”. O recorte é a América Latina, geolocalização que aprendemos na educação colonial, onde esse gênero literário esteve associado ao difícil período político e social marcado pelas ditaduras. Que prosseguem!

Hoje, muito estamos aprendemos sobre as cosmovisões indígenas, sua relação circular com o tempo e sobre como os malefícios da invasão européia se estendem até hoje. Aprendemos que a terra dos povos originários, onde estamos assentados nesse momento é Abya Yala, na língua do povo Kuna, originário do Panamá, que significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em Florescimento. Que tristeza ver essa vida, esse florescimento sendo enterrado, envenenado, queimado e assassinado diariamente…

E é nesse contexto de desconstrução e decolonialidade que explodem nas redes — as novas rádios — , o amor nos tempos de covid. Em tempos de morte, de ódio, de raiva e fúria a nova música brasileira amazônida das bordas invade o centro e injeta nos ouvidos esse antídoto antimorte. “É o amor”, como diz a multiartista paraense Aíla, que está lançando seu petardo “Sentimental”, álbum que funciona como bússola organizadora de um movimento que pulsa na nova produção musical do Norte e Nordeste desse país da falsa amistosidade.

Pois bem, “Sentimental”, como a própria artista define “é uma avalanche rítmica — com brega, calypso, brega funk, pisadinha, pagodão — fincado na cultura brasileira. As letras são gostosas e diretas, com refrões chicletes e forte apelo popular”. Com direção artística e musical da própria Aíla e um time de produtores que traz Baka, Iuri Rio Branco, Gabriel Souto e Félix Robatto, “Sentimental” tem participações de Rincon Sapiência (SP), Luísa Nascim (RN) e Keila (PA). “No novo disco, eu quis falar de amor, o tema mais popular de todos os tempos. O amor romântico, o amor doído, o amor debochado. A desilusão, o flerte, as mil facetas que envolvem a emoção e os encontros da nossa existência”, afirma a cantora.

Mal sabia ela que estava construindo a trilha sonora para um movimento urgente de afirmação do amor como o maior ato revolucionário de luta contra o fascismo, o fanatismo, a solidão e a tristeza de pessoas tão amargas, frustradas e doentes que diariamente contaminam os noticiários com seu veneno genocida. “Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder”, como nos ensina o grande filósofo camaronês Achille Mbembe, criador do termo Necropolítica.

Aíla não está sozinha. Nessa movimentação sobre o amor nos tempos de covid destacam-se ainda Os Amantes, banda que junta o cantor e compositor paraense Jaloo com o duo conterrâneo Strobo, formado por Arthur Kunz e Léo Chermont. E mais: Gaby Amarantos, que em seu novo álbum “Purakê” também aciona elementos estéticos do cancioneiro romântico do Pará falando desse amor urgente e necessário, além de trazer colaborações imprescindíveis como Potyguara Bardo, Elza Soares, Alcione, Linniker, Urias e Ney Matogrosso.

Importante ainda trazer pra esse rolê o álbum “Batidão Tropical”, de Pabllo Vittar, que além de resgatar suas origens nortistas e nordestinas — ela é nascida em São Luís, criada em Santa Izabel do Pará e depois moradora de Caxias, cidade no interior do Maranhão — aborda esse jeito desavergonhado de falar sobre o amor, devasso, doído, rasgado, sem pudor nem limites, como deve ser toda a luta por igualdade racial, social e de gênero.

O que mais impressiona em toda essa movimentação cultural é o fato de que aqui ninguém está pedindo "calma" e nem pensando no "futuro". Essa gente gostosa quer o agora, lugar de construção de qualquer possibilidade de porvir.

Interessante também pensar que ao contrário da Jovem Guarda, movimento “romântico” que se manteve alienado das mazelas da ditadura, aqui ninguém se coloca à parte das dores que desenham esse momento desolador. Como ninguém precisa de mais uma bruzinha no guarda-roupa, não precisamos de mais artistas que não se reconhecem dentro desse momento urgente de empatia e desconstrução de privilégios. O amor é a ferramenta mais poderosa e a música seu vetor mais valente de afirmação.

É música como micropolítica, gerada no campo dos afetos, determinada por respostas produzidas a partir da relação das pessoas com o mundo ao redor.

É tempo de mais Aíla e menos Marisa Monte. Calma é o c@r@£h•!

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