A PELEJA DA FORMOSA BANDIDA MAIS O LORDE DO SIARÁ CONTRA O CAPETÃO CLOROQUINA

SE QUER PAZ, PREPARE-SE PARA A GUERRA

Jackson Araujo
5 min readApr 19, 2021

A primeira carta de despedida que escrevi para um amigo morto foi na ocasião da partida de Ângela Borges (1947–2004), Birringa, a Formosa Bandida, uma mulher gigante que me chamava de 3x4 por conta de nossas diferenças de altura. Não por acaso, a pessoa em quem mais pensei ontem, domingo 18 de abril de 2021, quando soube pelo Instagram da partida do grande Professor Gilmar de Carvalho (1949–2021), porque foi ela com toda a sua lábia e poder de persuasão, que colocou o Professor Gilmar definitivamente na minha vida.

Era o segundo semestre de 1989 e depois de duas frustradas e mal-orientadas tentativas de me formar no Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, fui convidado por Gilmar a ir até sua sala, no segundo andar do prédio da coordenação do curso.

As memórias são desbotadas como fotos em sépia, mas lembro da sensação de entrar naquele ambiente sagrado, onde os professores guardavam seus arquivos e mantinham organizadas as aulas e materiais didáticos. A sala de Gilmar tinha essa aura de Biblioteca e por trás do birô, lá estava ele em sua elegância ímpar, vestindo roupas de linho, nos mesmos tons de bege das folhas das enciclopédias.

Indo direto ao assunto, ele me perguntou porque eu estava há um ano sem conseguir concluir o curso, devendo somente a derradeira disciplina “Projeto Experimental”. Contei pra ele quais haviam sido os dois projetos que tentei realizar — o primeiro, um programa cultural de variedades pra TV, que ía mudando suas temáticas como quem mudava de canal, com ruídos na transmissão da imagem, o que hoje parece um tanto comum, mas em 1988 a MTV ainda não tinha chegado no Siará, nem no Brasil. Não deu certo.

O segundo projeto experimental partia de uma reportagem fotográfica sobre a Feira do Beco da Poeira, maior centro comercial de Fortaleza, situada às margens da Praça do Theatro José de Alencar pros lados da Praça da Lagoinha, lugar de venda de roupas a panelada de vísceras em panelas ferventes, que exalavam aromas tão peculiares a quem já teve a sorte de entrar numa cozinha do sertão nordestino.

O que me interessava ali eram as roupas, verdadeiras joias costuradas de modo caseiro, beeem longe da massificada produção do fast fashion, que tem contribuído pra matar as habilidades das costureiras de bairro, tão comuns na minha infância e adolescência. Sou filho de mãe costureira e vem dela minha paixão pela moda e manualidades.

Para além das roupas, o que me interessava mesmo era a relação de cores, texturas, franzidos, rendados, babados e tecidos que se sobrepunham criando vestidos infantis de festa, de primeira comunhão. E mais: que relação eu poderia descobrir nessa investigação entre o fazer popular e o fazer de Lino Villaventura, artista da moda com quem eu tinha começado a colaborar em 1988? Também não deu certo.

No auge da minha arrogância juvenil, tentei empurrar a culpa do meu fracasso intelectual para os professores, que eu julgava sem competência para alcançar o objetivo das minhas mal costuradas propostas.

Gilmar, com sua fala doce, calma, minimalista e precisa, me explicou que se havia uma culpa, era somente minha, que não tinha apresentado uma metodologia, uma bibliografia e nem havia solicitado a orientação do professor, chegando no dia da entrega com o projeto escrito. A aula que não me havia sido dada nos dois semestres anteriores foi assim posta em menos de uma hora de conversa.

Agora vem a melhor parte: ele queria ser meu orientador! Eu disse prontamente que aceitava. Mas havia uma condição: que eu levasse pra casa uma série de cordéis pra ler e retornar com minhas observações. Desafio aceito, lá fui eu de volta pra casa no ônibus Circular, curiosíssimo pra descobrir o que aqueles livretos tinham de tão especial.

Devorei os cordéis, capas, rimas e sarcasmos. E retornei como combinado para uma nova reunião com o Mestre. Notei que todos os cordéis emprestados, já não lembro quantos, eram todos escritos e ilustrados por outro mestre, Abraão Batista, cearense de Juazeiro do Norte, que além de poeta é conhecido por suas xilogravuras. Mas lembro bem de dois títulos presentes nesse acervo de Gilmar: “Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte, Ceará” e “O Homem que Deixou a Mulher para Viver com uma Jumenta na Paraíba”, que vim a descobrir, era sua obra mais famosa.

Outro detalhe que me intrigou na obra de Abraão Batista era a junção de personagens típicos da cultura dos cordéis com assuntos da atualidade. Bingo! Passei no “teste”. Agora eu tinha Gilmar como orientador e toda uma estética da xilogravura (importante linguagem na pesquisa histórica e intelectual sobre o Siará realizada por ele) a ser descoberta.

E assim fui lendo sobre “fait divers”, seu papel na construção do jornalismo diário para as massas até chegar no filtro final: a relação entre as capas dos cordéis sensacionalistas de Abraão Batista e as notícias das primeiras páginas dos jornais diários. Foi lindo de fazer, datilografar, aprender e ser aprovado.

Finalmente eu estava formado no curso de Comunicação Social e pronto para encarar o próximo passo no grande plano secreto dos amigos Angela e Gilmar para minha carreira profissional: virar professor do Curso de Comunicação Social da UFC. Foi Formosa Bandida que me confessou, como forma de me incentivar a tomar um passo decisivo na minha vida intelectual. Confesso que amarelei.

O que Gilmar percebeu e realizou com maestria foi a junção de duas das minhas paixões: a comunicação de massa e a cultura popular. Um programa ilustrado e caótico pra TV com temas da pós-modernidade e os vestidos de volta-ao-mundo –aquele tecido sintético utilizado para dessorar o queijo no processo de prensagem, que não pode passar a ferro, não amassa e seca muito rápido– foram meu passaporte para o apaixonante mundo da literatura de cordel e por conseguinte minha paixão pela produção artística e cultural do Cariri a partir do Juazeiro do Norte, lugar onde fotografei pela primeira vez os vestidos de feira.

Ah, Professor Gilmar, queria ter o dom de Abrãao Batista agora para escrever “A Briga da Formosa Bandida mais O Lorde do Siará contra o Capetão Cloroquina”, como forma de expurgar o combo de tristeza e raiva que me contamina. Ih, até rimou! “Se você quer paz, prepare-se para a guerra”.

Em 1993, migrei para São Paulo, onde vivo até hoje, mantendo o sotaque e a paixão pela cultura do meu Siarazim. Sinto muito em não ter cumprido o desejo dele de virar professor na Comunicação Social da UFC, mas sigo trilhando o caminho da educação, buscando alimentar projetos que oriento e me desafio com a sensibilidade ensinada pelo grande Mestre, o Professor que acreditou em mim, uma criança que se apaixonou pelo perfume da açucena, assistindo teatro de sombra com bonecos de macaxeira por trás de um lençol iluminado por lamparinas, imaginando o cinema por meio das luzes dos carros que passavam na estrada do Boqueirão.

Acabo por me reconhecer fruto da “vivência de entrelugares, que é a experiência da maioria dos nordestinos, fadados a migração, a desterritorialização, a transplantação”, como escreve outro grande mestre, Durval Muniz de Albuquerque Jr.

E se existe um encontro possível em outro plano por aí nesse Sertão Paraíso, mande um beijo da 3x4 pra Formosa Bandida. Diga pra ela que vossos ensinamentos, prosseguem se ramificando e se espalhando por outros espaços. Vocês inventaram o “Nordeste criação artística” que carrego comigo. Essa explosão de desobediência e inconformismo.

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