A MORTE DA ROUPA
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QUANDO A MODA ARRANHOU A ARTE E TOCOU NA DOR DAS RUAS
A MORTE DA ROUPA é a performance que realizei ao lado de talentos emergentes da moda em 1997 e que inspirou a criação da frase “A MODA NÃO É MAIS SOBRE ROUPAS, MAS SOBRE PESSOAS”, durante a Trama Afetiva de 2019.
Quando comecei a refletir sobre o conteúdo que apresentaríamos no palco do Centro Cultural São Paulo durante quatro dias do mês de agosto de 2019, para a terceira edição do festival multicultural TRAMA AFETIVA, percebi que intuitivamente eu estava recorrendo ao pensamento que pautou essa performance.
Em 1997, fui convidado a apresentar uma performance de moda no evento “Babel”, no espaço onde seria construído o que é hoje o Sesc Pinheiros, em São Paulo. Assim, co-criei com jovens designers emergentes da cena underground da noite paulistana a ação batizada oportunamente de A MORTE DA ROUPA.
Já ali naquele tempo me incomodava o fato de que a roupa começava a migrar para um segundo plano, abrindo espaço para o protagonismo de uma nova geração de criativos que, cada um a seu modo, buscava traduzir em construções estéticas valores culturais baseados em comportamento, entretenimento, gênero e matéria-prima. Tudo ainda muito superficial se tomarmos como parâmetro a moda contemporânea que nos interessa e motiva no presente.
Participaram dessa ação performativa os designers: Thais Losso, Caio Gobbi e Vinicius Campion (que estava iniciando sua marca A Mulher do Padre ao lado da sócia Paula Ferrali), mais o artista têxtil Renato Dib e a marca SLAM, do designer Giuliano Menegazzo, que tinha as roupas favoritas da geração clubber paulistana. No cenário, fotos de Claudia Guimarães, que retratou sua mãe, o stylist Marcos Marla e a modelo Marina Dias. No styling da performance estavam Cesar Fassina e Daniel Ueda. Esse era o bonde de influenciadores de moda daquela época, pra usar um termo de hoje.
Trazendo um olhar de hoje sobre o que realizamos ali, consigo conectar essa minha imagem com cabeça de repolho com a foto da contracapa do álbum de estreia d'Os Mutantes (1969). Rita Lee, Arnaldo Batista e Sergio Dias tinham 19 e 21 anos nesta época, idades que regulavam com a daquela geração que estava ali conosco no palco, quebrando preconceitos, sem medo.
Quando pensei em criar uma imagem para a persona que desfilaria celebrando a morte da roupa, me veio a ideia de atuar no território de um conteúdo provocativo consoante com um dos momentos icônicos desse álbum, a música “Caminhante Noturno”, título que de alguma forma se conectava com a cultura clubber vivida intensamente por todos nós que emprestávamos nossa energia criativa, dando corpo e vestimentas à performance.
Essa track dos Mutantes tem o que é considerado um dos primeiros samplers da história da música brasileira, o som das vaias recebidas por Caetano Veloso no Festival Internacional da Canção com a plateia gritando “Bicha! Bicha!”, logo após o discurso feito pelo cantor ao ser impedido de interpretar a canção “É Proibido Proibir” por inteiro.
Intimamente, traduzimos essa forma de afrontar a plateia por meio dos meus gestuais desmunhecados, peruquinha, unhas e cílios postiços, que iam sendo arrancados a cada entrada na passarela, separando os blocos dos designers convidados a mostrar suas criações.
Era uma imagem também solitária de um astronauta feio, angustiado num meio tão controlado pela beleza. Havia ainda na ocupação daquele espaço o desafio de confrontar uma plateia muito mais interessada em assistir aos grande nomes convidados para o evento — Kazuo Ohno, Nina Moraes, Nazareth Pacheco, Gerald Thomas, Orlan, Cabelo e Zé Celso — do que a um cearense recém-chegado à São Paulo, que imprimia de forma livre suas opiniões críticas sobre moda na Folha de S.Paulo e que foi convidado pela curadoria do evento para representar a mídia moda naquele território, de forma inédita.
O desconforto que sentíamos dos olhares que nos ameaçavam nas ruas por conta de nossas roupas, cabelos e atitudes foi a força que retornou para a plateia, mantendo-se atenta e silenciosa enquanto desfilávamos nossas angústias até que, ao final, uma mulher em situação vulnerável e de rua, com o rosto e o corpo todo machucado (por violência física ou atropelamento, nunca soubemos), ultrapassou o bloco de pessoas que assistia de pé ao nosso derradeiro ato, aplaudindo e gritando algo como: "É isso mesmo!". Talvez ela tenha se conectado com a imagem das mulheres machucadas desenhadas por Caio Gobbi ou simplesmente pela estranheza que arranhava o ar daquela noite gelada de sexta-feira.
Aquele foi o reconhecimento e a melhor recepção que poderíamos ganhar pelo ato performático que se pretendia fúnebre: a voz humana cantando uma dor das ruas. Um réquiem ao som do grito dos oprimidos.