A MODA E A CIDADE

Jackson Araujo
10 min readJan 5, 2024

METÁFORAS REVELADAS NO DESFILE DA TRAMA AFETIVA

Cena do backstage do desfile da Trama Afetiva na Brasil Eco Fashion Week. FOTO CADDAH | FOTOSITE

Nesse texto, decidi correr o risco de explicitar alguns detalhes escondidos no desfile da Trama Afetiva, realizado na Brasil Eco Fashion Week, que eu mesmo só descobri depois de assistir algumas vezes ao vídeo da passarela. Longe de querer parecer ensimesmado, a proposta desse texto é uma reflexão sobre a importância do tempo na construção da análise crítica da imagem, ou seja, na leitura visual de um projeto depois que ele acontece, sem a pressa do fait divers, sem a urgência histriônica das redes e seu FOMO, apenas com o compromisso de compartilhar aprendizados e percepções que nos chegam somente com o passar das horas e com a contemplação ativa livre.

Dito isso, vamos às metáforas encontradas.

METÁFORA #01: ESQUELETOS MAIS QUE PRÉDIOS

Modelos desfilam transportando a série de estruturas metálicas criadas pelo artista plástico Nelson Barkerville. FOTOS MARCELO SOUBHIA | FOTOSITE

O desfile abre com três modelos vestindo peças em crochê de fitas de náilon de guarda-chuvas pretos portando nas mãos os esqueletos de guarda-chuvas da série “Aranhas” construída pelo premiado artista plástico e diretor de teatro Nelson Baskerville, mestre na arte de criar objetos a partir de upcycling. A convite de Thais Losso, diretora de moda da Trama Afetiva, Nelson aceitou o desafio de criar objetos a partir das estruturas metálicas dos guarda-chuvas sem a cobertura do náilon, utilizado aqui para a feitura dos vestíveis. Por sua beleza e mensagem poética, os objetos foram parar nas mãos dos modelos na passarela.

Depois de muito ver as imagens, passei a relacionar as estruturas de Baskerville com as ruínas do Edifício Rana Plaza, que desabou em Bangladesh no ano de 2013, descortinando o lado obscuro da “glamurosa” indústria internacional de roupas, arregalando os olhos e revelando não só o amplo descumprimento com normas básicas de segurança, mas também a total falta de cuidado com a vida das pessoas envolvidas nesses processos de trabalho análogos ao trabalho escravo.

Além de se assemelharem a imbricados ninhos de aranhas (que tecem a teia da vida, que tecem os crochês feitos de náilon), as estruturas metálicas sobrepostas de Baskerville são como esqueletos de prédios desabados ou queimados, são como a arquitetura de gambiarras que colocam em risco a vida das populações periféricas alocadas em barracos e palafitas à beira de esgotos, relacionando-se com o racismo ambiental que praticamos, com a distribuição injusta dos recursos e riscos ambientais entre diferentes grupos étnico-raciais.

De acordo com as narrativas brancas que organizam as políticas urbanas, as cidades, assim como não tem gênero, também não têm cor. Essa é mais uma das facetas do negacionismo que se tornou recorrente sobre a questão racial e de gênero no Brasil. Como pode uma nação que foi construída sob as bases do racismo como sistema de sustentação colonial, com amplo arcabouço empírico e científico de discriminação racial, não ter impresso em seu território as marcas dessa construção histórica? (Joice Berth em "Se a cidade fosse nossa: racismos, falocentrismos e opressões nas cidades", 2023).

Não por acaso, a primeira modelo a surgir carregando o esqueleto de guarda-chuva como um estandarte apresenta-se em sintonia com outra citação da mestra Joice Berth em suas analogias sobre a urbanização, a cidade e a cor das peles.

A urbanização […] criou lugar de preto e lugar de branco. […] O padrão de marginalização cunhado a partir da cor da pele seria efetivo e convincente sem o respaldo dos territórios favelizados e periféricos nos dizendo que ali é o lugar do negro? Suponho que não. Toda narrativa precisa de uma verossimilhança imagética para treinar nosso olhar (Joice Berth em “Se a cidade fosse nossa: racismos, falocentrismos e opressões nas cidades”, 2023).

Não por acaso também, o título do desfile é “Tudo pode acontecer”, que diz muito sobre a liberdade de experimentações que constrói seu processo criativo, além de falar das incertezas climáticas que nos rodeiam — um dia tempestade, noutro calor escaldante — caracterizando essa participação na Brasil Eco Fashion Week como um manifesto micropolítico por meio da moda.

Assim, o desfile é, de fato, um recorte detalhado das camadas de estrutura política que a Trama Afetiva atravessa tendo no impacto social a perspectiva maior do seu trabalho como plataforma de pesquisa e criação em design regenerativo na moda. Com o investimento de recursos financeiros e humanos para suas iniciativas, a Trama impacta a vida de cerca de 300 pessoas (entre costureiras e catadoras) mensalmente — em sua maioria, mulheres responsáveis pelo sustento de suas famílias, alocadas nas periferias da cidade de São Paulo.

No desfile, a cidade exposta não é mais sobre seus prédios, mas sobretudo sobre as pessoas que não têm onde morar. Cidadãos e cidadãs sem direito à cidadania.

METÁFORA #02: ESTAMPAS QUE SÃO MUROS

As sobreposições de estampas criando um efeito de grafite ou stêncil descascado relacionando moda e espaço urbano. FOTOS MARCELO SOUBHIA | FOTOSITE

O desfile é pontuado por peças que trazem sobreposição de imagens silkadas, dando ao náilon multicolorido dos guarda-chuvas uma camada extra de criatividade com as estampas em silk do artista plástico e serígrafo Anderson Rubbo, que atua como designer de superfícies há mais de 25 anos. Anderson utiliza upcycling de material artístico que seria descartado, como telas, restos de tinta, retalhos e sobras de tecido, embalagens, para retratar por meio da sobreposição, imagens do lugar onde nasceu, o bairro periférico da Penha, em São Paulo.

E o que ele traz para o desfile da Trama Afetiva é exatamente a tradução do ambiente das cidades, criando estampas em linguagem de fanzine sobre o náilon, com desenhos inéditos feitos a partir de telas de silkscreen já existentes, sugerindo a ideia de muros rabiscados, grafitados e pichados, estabelecendo assim em suas camadas e membranas uma identificação juvenil com a cultura das ruas.

Os adolescentes […] estão se identificando, com os […] os meninos e meninas da periferia e das favelas. Identificam-se com a cultura hip hop: rap, skate, grafite, “bombeta e moleton”. Há um aspecto político nesta atitude, é claro. Cresce entre os adolescentes uma recusa dos padrões consumistas predominantes em sua classe social e uma busca de “autenticidade”, de valores que façam mais sentido no mundo injusto em que vivem. Verdade que é uma recusa ingênua, pois também passa pelo consumo: trata-se de comprar outras roupas, outros CDs, frequentar outras casas noturnas. Mas como toda estética comporta uma ética, a escolha do modelo da periferia faz alguma diferença. É como se só fosse possível encontrar alternativas para a falta de sentido da vida pautada pelo consumo identificando-se com aqueles que não têm recursos para consumir. (Maria Rita Kehl, em “A juventude como sintoma da cultura”, 2018)

Assim, o que se pode ler nessas sobreposições hipervisuais é uma espécie de busca pelo mimetismo com o cenário urbano — os prédios pichados, os muros grafitados, o excesso de stêncil descascado — conferindo ao náilon não só caráter de uma espécie de segunda pele, que protege contra o vento e a chuva, mas também chancela a ideia de pertencimento cultural, de uma identificação de grupo, como são as tatuagens, os piercings. Vestir uma sobreposição de silks seria como vestir uma espécie de body art sintonizada com a cultura do upcycling.

As muitas sobreposições de Anderson Rubbo. FOTOS MARCELO SOUBHIA | FOTOSITE

METÁFORA #03: A REVOLUÇÃO PRATEADA

Cordelia Lanas no momento Sustentabilidade é Pop! FOTOS MARCELO SOUBHIA | FOTOSITE

Não que seja exatamente uma novidade, mas a presença dos cabelos prateados da artesã Cordelia Lanas na passarela, pode ser lida como um manifesto da moda como micropolítica antietarista. Sua presença colorida é leve, vestida em um dos looks mais irônicos da passarela (casaco de minions sobre macacão de barbies e princesas da Disney), destacando sua presença como uma entidade-madrinha, figura que parece responder a uma questão deixada sem resposta pelo diretor francês Jean Luc-Godard no seu último filme “Elogio ao Amor” (2001), em que faz os personagens falarem repetidamente a pergunta: “Qu’est que c’est un adult?”, “o que é um adulto?”.

Parece humilhante deixar de ser jovem e ingressar naquele período da vida em que os mais complacentes nos olham com piedade e simpatia e, para não utilizar a palavra ofensiva — velhice — preferem o eufemismo “terceira idade”. Passamos de uma longa, longuíssima juventude, direto para a velhice, deixando vazio o lugar que deveria ser ocupado pelo adulto. (Maria Rita Kehl, em “A juventude como sintoma da cultura”, 2018)

Cordelia, em sua entrada na passarela, ocupa esse vazio com um sorriso no rosto digno das vencedoras. Personifica o desejo de Thais Losso em sua missão como diretora de moda da Trama Afetiva: "A sustentabilidade é pop".

METÁFORA #04: PANTERAS NEGRAS

Panteras Negras. FOTO CADDAH | FOTOSITE
Acima, a icônica Fatima Palma (esq.) e Paloma Gervásio Botelho (dir.), com seu visual afropunk. FOTOS MARCELO SOUBHIA E CADDAH| FOTOSITE

Na cena final do desfile, um casting diverso em sua negritude — atenção para a presença máxima de Fatima Palma, modelo dos anos 1970/80 — surge vestindo as peles plásticas de felinos (onças, tigres, leopardos), estampas convencionalmente chamadas de “animal print” na linguagem da moda contemporânea. Podem ser lidas uma celebração sobre o poder da negritude em criar fábulas como a branquitude sempre fez. Ou como nos ensina Grada Kilomba em suas desobediências poéticas na urgência da descolonização do pensamento sobre a marginalização de certos corpos e certas identidades; a capitalização da terra, da natureza, do ambiente; e a militarização das relações humanas:

“A política do colonialismo é a política do medo. É criar o ‘outro’, criar corpos desviantes e dizer que eles são assustadores e terríveis e que nós temos que defender-nos deles como barreiras como passaportes e fronteiras. […] Normalizamos palavras e imagens que nos informam quem pode representar a condição humana e quem não pode. A linguagem também é transporte de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas. Essa desobediência poética é descolonizar”. (Grada Kilomba, sobre sua exposição “Desobediências Poéticas”, 2019).

Assim, o que esse bloco pode também transmitir? Todas as pessoas assumem uma segunda pele às vezes. Muitas vezes, constróem uma imagem pública por meio dessa pele. Uma imagem que fortalece traços de beleza, sensualidade e certa coragem; o que se desejar. Essa imagem também pode ilustrar nosso poder sobre nós mesmos ou sobre os outros. É assim que o multiculturalismo do leopardo tem se tornado ao longo dos anos um símbolo global.

Na África Central e Austral, a pele do leopardo é uma representação tradicional do poder tribal reservada a feiticeiros, chefes, mais tarde, chefes de estado, como Mobutu Sese Seko, ditador do Congo Kinshasa por 36 anos. O chapéu de leopardo habitualmente usado por Mobuti é como uma coroa, símbolo da vitória de um homem sobre seus inimigos.

Na África do Sul, a pele do leopardo é um emblema do poder de Zulus e Xhosas há séculos. O próprio Nelson Mandela vestiu as roupas tradicionais depois de ser libertado da Ilha Robben.

Na Paris de 1947, foi Christian Dior quem impôs o padrão de leopardo pela primeira vez nas passarelas europeias. Desde então, a estampa de leopardo se tornou um símbolo de sensualidade e segurança feminina na moda.

O mundo ocidental se apropriou da imagem símbolo do leopardo, seu pelo e sua estampa se tornando um padrão que não sai de moda, gerando um fascínio em termos de história e simbolismo cultural.

A excentricidade inerente a esse padrão torna cada pessoa única. Vestidas em animal print elas são diferentes entre si e têm garantido seu desejo de mostrar ao mundo suas personalidades e singularidades, independente da origem, localização e etnia.

Pode-se ler o animal print como uma declaração única, mas globalmente vinculativa, sobre a qual podemos avançar na conversa em torno do que nos conecta como seres humanos, apesar de nossas diversidades étnicas, sociais ou culturais.

Nesse lugar, o náilon com estampa de leopardo pode ser símbolo de coragem, beleza e força; uma representação para manter viva no corpo a energia vital e a força da natureza, lugar onde o plástico tóxico levaria 30 anos para se decompor. E os vestíveis da Trama Afetiva se posicionam para interditar esse descarte no aterro sanitário.

Tudo isso pode ser resumido numa só imagem: a presença afropunk de Paloma Gervásio Botelho, diretora de racialidade da Trama Afetiva de punho em riste na fila final do desfile.

METÁFORA #05: A CHUVA DO AMOR

No final do desfile, Thais Losso, diretora de moda da Trama Afetiva, e seus colaboradores: Nana Wharton, Davi Vallerio, Itiana Passeti, Anderson Rubbo, Felipe Madeira e Pri Tiltscher. FOTO MARCELO SOUBHIA| FOTOSITE

A trilha sonora composta pelo diretor musical e compositor Dan Maia diz muito sobre o que pode ser visto. Som e imagem em completa sinestesia. A partir de um remix de Ad Ferreira para a canção “Chuva”, cujos vocais foram cedidos pela cantora Gaby Amarantos, em 2013, para a realização de uma série de remixes da extinta festa Tropicanalha, Dan realizou seu upcycling sonoro.

“Tudo pode acontecer”, nome do desfile, foi retirado de uma frase da música “Chuva” escrita pelas compositoras Iara Rennó e Thalma de Freitas, que versa sobre o movimento da natureza para fazer chover. Tudo isso colocado num contexto contemporâneo de fervura global, onde a humanidade tem que aprender a lidar cada vez mais com catástrofes climáticas.

Frente a todos esses desafios, Dan vai costurando samples a sonoridades autorais de seu theremin num loop hipnótico quase educativo sobre o poder da natureza em mudar todas as regras do jogo. São como respostas aos nossos descasos e violências cometidas contra os rios, oceanos, árvores e todas as vidas não-humanas, mas que são vidas.

Como antídoto final, Dan propõem uma “chuva de amor no mundo”. E sobre isso não há metáforas. No mundo da colaboratividade, é isso e pronto!

--

--