A INVASÃO NEGRA LGBTQIA+
EBONY, JUP E RICO HACKEIAM O SISTEMA NERVOSO DE SP
Com a partida inesperada da beauty artist e performer Ebony Pinup, resgatei dos meus arquivos de textos não publicados uma entrevista que realizei com ela e mais dois importantes personagens da cultura LGBTQIA+ negra paulistana em suas diferentes frentes de ação profissional e política. O ano era 2017, quando imergi numa reflexão sobre se a cidade de São Paulo tem mesmo uma “vocação natural” para receber o outro.
O recorte aqui é sobre os desafios pessoais e sociais que são vivenciados diariamente pelos corpos negros LGBTQIA+em movimento: no fluxo entre a periferia e o centro; da condição de subalternizades para a de agentes da transformação; na transição para novas identidades de gênero.
São três conversas rápidas e muito inspiradoras sobre como manter a resistência criativa hackeando o sistema nervoso da cidade para materializar a construção de uma história que ainda encontra bloqueios para ser escrita e documentada.
Ao final, duas certezas: o lugar de fala ainda não é respeitado como deveria ser; somente juntes podemos elaborar uma percepção atualizada de valores e estratégias para uma invasão — e não mais ocupação — do território da cidade. Afinal, é derrubando padrões e celebrando as múltiplas manifestações de corpos e corpas que possibilitaremos diferentes leituras e aprendizados para a vitória da diversidade.
Cantor, rapper, poeta urbano, propagador das verdades cotidianas, Rico Dalasam coloca seu talento natural para transformar as tensões da vida em lugar de fala, ultrapassando a condição inicial de transgressor no cenário do hip hop nacional para a de importante peça na construção de um imaginário queer na política de identidades por meio da nova música de São Paulo.
Naquela época, ele estava a todo vapor na agenda de shows da turnê de lançamento de seu EP “BalangaRaba", evoluindo sobre seu discurso inicial de “cantar o orgulho que vem depois da vergonha”. “No percurso, descobri que minhas fragilidades são os componentes da força que me move. Agora falo sobre a potência de resistir e transitar entre os sonhos de um corpo que existe de forma plena exatamente onde ele foi plantado”.
Com seu visual mutante, Rico confronta os discursos de normalização das identidades sexuais e fortalece o pensamento de Michel Maffesoli sobre o ser “mais do que um” formado por um sistema multicamadas de “centros, margens, periferias, construções, intenções de poder, discursos, exclusões”, assim como a multiartista JUP, que encarna também as personas Jup do Bairro, Jup Pires, Marya de Uma Sonya, JUPrincess, Mia Colucci e tem na performance a possibilidade de externar seus sentimentos e criatividade.
Educadora, palestrante, stylist, atriz e produtora de eventos sem ao menos se profissionalizar academicamente, JUP inicialmente intercalava seu projeto musical como rapper ao lado da MC Linn da Quebrada. No campo da performance, ela participou da Trienal de Artes Frestas com “Gordura Trans”, concebida por Miro Spinelli. A partir de seu monólogo autoral “Corpo Sem Juízo”, JUP tem sido convidada para falas e palestras em eventos e universidades abordando os recortes do corpo que habita: “Gordofobia, transfobia, racismo e outras opressões sociais levando um novo ponto de vista autoral, questionando meu próprio papel e comportamento”.
A mesma vocação multidisciplinar acompanha Ebony Pinup, maquiadora, hostess e performer, que atuou na noite paulistana por duas décadas. Ela cursou Editoração na ECA-USP e atuou nos filmes “Carandiru” e na série “Carcereiros”, sendo ganhadora do 19º Prêmio Avon de maquiagem em 2014 por seu trabalho de maquiagem e caracterizações em séries e filmes. “Senti naquele momento, enquanto era aplaudida como profissional, que representava muitos transgêneros que trabalham na mesma área e nunca tinham tido uma representante vencedora”.
Conversei com Rico, JUP e Ebony na busca de entender como o corpo negro que transita da periferia ao centro, evolui da condição de excluído para o de agente da transformação.
RICO DALASAM
“Meu corpo é uma ponte e quem se permitir, atravessa”.
JACKSON — Qual o espaço que seu corpo ocupa na cidade de São Paulo?
RICO — Meu corpo na cidade é de dois significados. Quando periferia, ele é parte, é história de um local, de um povo, de uma imagem. Quando centro, ele é corpo estranho, estrangeiro, suspeito. E quando eu, que sinto essas duas reações, preciso sintetizar e guiar meu corpo para estar presente onde quer que seja, sei que sou um meio de diálogo entre os dois pontos. Meu corpo é uma ponte e quem se permitir, atravessa.
J— Como hackear SP para colocar a voz da periferia na pauta das transformações cotidianas da cidade?
RICO — A música, arte que eu exerço com mais dedicação, é sem dúvida o meio por onde eu consigo permear as casas, os ouvidos, as classes, as cores. Através da voz, eu consigo. E a imagem que eu construo é também um jeito de hackear isso, porque não estou me ligando apenas às marcas. Às vezes, a gente tá vestindo muitos reais no corpo. Às vezes, a gente tá vestindo uma preciosidade de detalhes, seja num cabelo, numa unha, que tem um outro tipo de valor. Como pra ser incluso, pra se inserir, pra pertencer, é preciso estar ligado a valores — monetários na maioria das vezes — , então a gente faz a imagem que acha que precisa naquele momento pra dialogar com quem quer dar preço e contabilizar quanto tá valendo esse corpo-cabide, que hora ou outra a gente se presta a ser.
J — Qual o seu papel neste cenário de transição?
RICO — Inevitavelmente, tem a hora de ser flor e a hora de ser granada. Eu falo isso bastante, porque tem um momento em que só a doçura, só o amor, só a candura no olhar e na relação com o meio faz ser possível adentrar alguns espaços e algumas mentes. Outra hora, por questão de sobrevivência, a força, a rigidez, o corpo arisco, a agressividade num olhar, num gesto vem à tona, porque é um extinto da natureza. Então, a gente sempre passa por esses dois lugares. As linhas que dividem a cidade, as pontes, os rios, as grades, as guaritas, as fortalezas — vulgo portarias –, são elas que determinam isso. Assim como as cortinas que dividem a plateia do palco, a grade que divide o público do artista e assim vai..
J— Como artista e cidadão, quais são as construções diárias para fortalecer e disseminar seu discurso e empoderar um movimento?
RICO — Eu acho que a todo tempo, o que mais me faz dar sentido a tudo isso é estar atento à emocionalidade das pessoas. A gente ora tá num lugar tensionado por alguma questão das mil que temos em determinado instante, ora a gente precisa dialogar sobre o futuro, sobre a possibilidade da existência nos próximos episódios. E pra fazer isso tudo se condensar, é preciso ter a sensibilidade pra notar a necessidade do lugar de fala e do lugar de escuta. Acredito que essa sensibilidade é que traz a riqueza de conseguir plantar, empoderar, resistir em cada situação. E em todas.
J — Em que momento você percebeu que SP recebeu seu lugar de fala?
RICO — Eu não sei se São Paulo já percebeu o meu lugar de fala, porque às vezes, eles precisam das pessoas que me escutam e aí eles buscam me usar, me comprar, pra falar com quem me escuta. Isso não é um lugar de fala. Isso é usar a minha voz pra que eles tenham lugar de fala com quem eles precisam que estejam sentadinhos no lugar de escuta. Não me engano, não me iludo com isso. Tô aí no capital igual a todo mundo. Mas, onde eu sei que estou falando de coração pra coração, é nesse lugar que se estabelece a troca, possível pela minha história e minha vivência, que transformo em arte. É aí que as pessoas me recebem nesse lugar de fala, por identificação.
E qual estratégia para que esse lugar conquistado esteja sempre renovado e fortalecido?
RICO — Busco me renovar e me fortalecer diante das conquistas e das curvas que a narrativa da vida traz, que os lançamentos propõem, contando a verdade do que estou vivendo naquele instante. 2014 era um conjunto de verdades. Em 2017, algumas verdades já se transformaram, outras já não são mais nem verdades, nem desejos, nem utopia, apenas deixaram de existir dentro da minha existência ou passaram a fazer parte do presente. Quando diagnostico isso e divido com as pessoas, mesmo que não seja a coisa mais profunda ou trágica, mais latente e emergencial de um tempo, assumo a minha verdade e tento trabalhar com ela. Seja pra viver, pra encontrar pessoas ou pra vender, só trabalho com a verdade que estou sentindo naquele instante.
EBONY PINUP
“Fala-se muito em inclusão de personagens trans e negros, mas a maioria deles é de bandidos ou com algum caráter duvidoso. Por que não uma personagem trans que trabalha normalmente, que busca uma felicidade tranquila?”
JACKSON — Qual o espaço que seu corpo ocupa na cidade de São Paulo?
EBONY — Meu corpo ocupa o espaço junto aos trabalhadores da cidade. Com a rotina de mais de 10 horas de filmagem diárias, não há como não me sentir assim. Faço parte dessa força que faz São Paulo girar. Mais uma formiga, mas que tenta também nas suas expressões artísticas, questionar, entreter e desmistificar o mundo trans.
J— Como hackear SP para colocar a voz da periferia na pauta das transformações cotidianas da cidade?
EBONY — Morei por quase 30 anos na Zona Norte da cidade, atualmente moro no Centro. A exclusão na área central de SP também se aproxima muito da que acontece na periferia. A grande diferença é estar bem mais próxima das regiões mais valorizadas da cidade, o que aumenta sua visibilidade. Muitas vezes acho que a minha imagem como preta, trans e gorda funciona como voz dessa periferia por onde eu andar. Prefiro ser uma voz que sussurra a uma voz que grita. As transformações mais importantes são construídas aos poucos e acho que assim consigo ser ouvida mais profundamente. Se todos os tipos de vozes ecoarem, alguma será ouvida.
J — Qual o seu papel neste cenário de transição?
EBONY — Mais uma vez gosto de me imaginar como uma formiga, atuando no cotidiano, na conversa enquanto tomo um café ou na mesa do bar. Gosto de me imaginar como um espelho mostrando, por exemplo, como algumas atitudes, até de boa fé, mostram um preconceito enraizado com o que imprime ser da periferia. Por exemplo, quando algum branco diz que “também” tem cabelo ruim (não acho que meu cabelo seja ruim!), quando um hétero trata uma travesti no masculino e acha que está sendo gentil, ou quando alguém segura a bolsa forte ao passar do meu lado e eu repito o gesto dela segurando a minha fortemente também. Gosto de plantar essa semente na cabeça das pessoas pra que pensem sobre o assunto.
J — Como artista e cidadã, quais são as construções diárias para fortalecer e disseminar seu discurso e empoderar um movimento?
EBONY — Como artista a disseminação de um discurso de empoderamento atinge muito mais gente, mas muitas vezes não falo com as minhas próprias palavras, e sim, através de uma personagem. Por uma época questionei aceitar papéis de presidiárias e prostitutas por achar que só aumentaria a imagem preconceituosa. Fala-se muito em inclusão de personagens trans e negros, mas a maioria deles é de bandidos ou com algum caráter duvidoso. Por que não uma personagem trans que trabalha normalmente, que busca uma felicidade tranquila? Enquanto esse papel não chega, continuo aceitando os outros, quando vejo a possibilidade de demonstrar uma natureza mais humanizada. É muito mais difícil atacar alguém que você reconhece um humano como você.
J — Em que momento você percebeu que SP recebeu seu lugar de fala?
EBONY — Dois momentos me marcaram muito. A primeira foi quando me chamaram para assinar a caracterização do longa- metragem “Hoje eu quero voltar sozinho”, do diretor Daniel Ribeiro. Acho que nesse trabalho contribui artisticamente para que essa voz fosse ouvida por muita gente, extrapolando o gueto GLBT. É um filme que sussurra. Fala sobre a descoberta do amor no mundo gay adolescente, tão sensível como no mundo hétero. O outro foi quando recebi o Prêmio Avon na categoria Audiovisual. Senti naquele momento, enquanto era aplaudida como profissional, que representava muitos transgêneros que trabalham na mesma área e nunca tinham tido uma representante vencedora.
J — E qual estratégia para que esse lugar conquistado esteja sempre renovado e fortalecido?
EBONY — Manter-se nesse lugar não é nada fácil. Você sempre tem que provar ser capaz e que está evoluindo cada vez mais. A melhor estratégia pra isso? Provar com seu trabalho e sua arte.
JUP
“Eu acreditava muito em ocupação há poucos meses atrás, hoje penso em invasão. Invasão pela necessidade de não fingirmos mais que está tudo bem, que esses corpos não são uma tendência e que precisamos ser ouvidas para que possamos nos respeitar com todas as nossas diferenças”.
JACKSON— Qual o espaço que seu corpo ocupa na cidade de São Paulo?
JUP — Como me comporto nos espaços que frequento em São Paulo, como desenvolvo meus trabalhos artísticos, como reajo ou não sob os olhares julgadores, quando decido se saio de casa maquiada ou não, com peruca ou não. Todos esses espaços e estratégias de ocupação são políticas e dizem respeito a um posicionamento; são atitudes que muitas vezes soam radicais ou invasivas justamente por ser de um corpo que questiona a norma e a estrutura opressora.
J — Como hackear SP para colocar a voz da periferia na pauta das transformações cotidianas da cidade?
JUP — O movimento periférico em prol da arte, comportamento e articulações socioeducativas vieram se tornando assuntos impossíveis de serem invisibilizados, principalmente em uma grande metrópole como São Paulo. Pela Internet criamos redes com viés de fortalecimento e identificação. Com isso temos o papel de hacker, onde ficou insustentável apenas as teorias falarem sobre as práticas e vice-versa, trazendo o ecoar das favelas para centros, universidades, discussões empresariais e o reconhecimento das potências autodidatas e sem grandes recursos, mas com muita propriedade e autenticidade.
J — Qual o seu papel neste cenário de transição?
JUP — Eu passei a minha vida inteira ouvindo que o que me tornei hoje não era bom. Que ser preto é feio, logo precisaria de uma cartilha de como uma pessoa negra precisaria se comportar para ser minimamente bem vista ou validada na sociedade. Que ser gorda é feio e nojento, logo esse corpo seria direcionado a profissões que essa beleza presa em um cativeiro fosse ignorada e principalmente escondida. Que como favelada você está suspensa a viver na sua quebrada, sem muitas expectativas de sair ou conhecer novas culturas e possibilidades de vida. E de ser trans, principalmente com performatividade de um gênero questionável e não palpável pela heteronormatividade. “Mas você é trans? Mas e esse chuchu no teu rosto? Mas quando você vai operar? Cadê o peito?”… Como se o corpo objetivo transitasse entre o de Lea T. ou Roberta Close. O meu papel com tudo isso é de quebrar esse espelho imaginário e me reinventar com as dores e delícias de ser eu mesma; com chuchu no rosto, estrias pelo corpo, marcadores periféricos, me apropriando de tudo isso e mostrando o quão precioso é essa particularidade de resistência e poder.
J — Como artista e cidadã, quais são as construções diárias para fortalecer e disseminar seu discurso e empoderar um movimento?
JUP — Não é fácil. Sair na rua com as roupas, cabelos, bijuterias e o corpo que habito, não é fácil. Não é todo dia que eu me sinto bonita, não é todo dia que me sinto “empoderada”, não é todo dia que eu acordo pronta pra enfrentar os leões diários. E é importante também falarmos sobre isso, sobre essa saliência e problemáticas que enfrentamos justamente por conta desses marcadores estruturais do não- pertencimento. Com amores negados, desejos negados, trabalho negado, afeto negado, diretos negados. E por isso o “ser artista”, a arte possibilita que cheguemos onde nunca imaginamos estar, dialogar e externar as dificuldades de alcançar esses espaços. É preciso de muito grito. Eu não consigo chegar em uma exposição com a fotografia de um cachorro ou uma pintura abstrata. É preciso gritar pra ser validada enquanto artista, pois mesmo com recursos acadêmicos e um vasto currículo de cursos e oficinas, precisamos nos validar de experiências que raramente chegam pra nós como oportunidades. E esse fortalecimento se torna coletivo. Dificilmente um preto, uma travesti, ou pessoa em situação de vulnerabilidade chega em locais e notoriedade sozinhos sem outras pessoas com os mesmos marcadores, pois os assuntos que temos a dizer são sempre "muito chatos", pois falamos de realidades divergentes da vida cor-de-rosa cheia de possibilidades e falsa sensação de igualdade e humanismo. Falar de privilégios é "muito chato", pois você tem que reconhecer a facilidade ou a menor dificuldade que você teve em comparação ao outro corpo, com quem finge empatia, mas que na realidade não se importa.
J — Em que momento você percebeu que SP recebeu seu lugar de fala? E qual estratégia para que esse lugar conquistado esteja sempre renovado e fortalecido?
JUP — Infelizmente São Paulo ainda não percebeu esse local de fala, principalmente se falarmos em grande ou média massa. Apesar de serem assuntos que sempre existiram, corpos que sempre existiram, ainda é muito complexo colocarmos esses assuntos em grandes veículos, pois não é o que interessa de fato. Vivemos em um país que reproduz os mesmos estereótipos de educação e noção de sociedade durante séculos, onde as próprias escolas da periferia e colégios de classe média não acompanham a evolução social e os problemas que precisam urgentemente serem discutidos e abolidos. Estamos falando de crianças que não querem sair de casa, crianças que nem sabem o que é performance de gênero e sexualidade, mas já pensam em morte, adolescentes e adultos que vivem duras e tristes realidades por serem quem são ou o que desejam ser. Eu acreditava muito em ocupação há poucos meses atrás, hoje penso em invasão. Invasão pela necessidade de não fingirmos mais que está tudo bem, que esses corpos não são uma tendência e que precisamos ser ouvidas para que possamos nos respeitar com todas as nossas diferenças. A noção de igualdade nos mostrou que estamos longe dessa realidade, precisamos nos reconhecer diferentes e sermos protagonistas de nossas próprias histórias.
*Importante: As colagens que ilustram as entrevistas foram feitas com fotos encontradas na web, selfies ou publicadas sem créditos dos autores.