A ESTRELA CIPÓ

Jackson Araujo
6 min readMar 21, 2024

UMA CARTA DE AMOR PARA LIANA PADILHA (1963–2024)

Liana Padilha em show no extinto clubinho Xingu (2003).

Tive a sorte e o prazer de conhecer Liana entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990. No Rio, embalado pela atmosfera dark do Crepúsculo de Cubatão, quando ela fazia parceria com Rogerio S. Em SP, no ateliê da Sucumbe a Cólera, sua marca com o companheiro Regis Fadel, localizado na Rua Augusta, onde criavam looks divertidos e inéditos, transitando entre o Clubber e o Espacial.

Mas a convivência, convivência mesmo veio nas noites do extinto clubinho Xingu, de Zeca Gerace e Victor Correa, onde criamos uma espécie de resistência electro tropical — algo como o tal tropicalismo dark que ela gravou recentemente — quando a onda dos megaDJs dava ares de cansaço e amigos DJs viraram a sensação para amigos na pista.

Ali, revezávamos as noites de sexta, a cada 15 dias, eu e Liana + Luca Lauri. E fora do clube, nos encontrávamos para jam sessions no apto de Luca. Foi numa dessas noites que eu apresentei para Liana a letra de “Sônia”, um texto longo e verborrágico que havia escrito quando ainda morava em Fortaleza, nos anos 1980, impactado pela leitura do texto “Valsa Nº 6”, de Nelson Rodrigues. Liana pirou na construções das frases, que tinha aquele perfume dark, do qual bebemos em nossa juventude.

Eu e Liana numa das muitas noites do clubinho Xingu, c. 2003.

Somos contemporâneos, taurinos, eu do dia 7 de maio e ela do dia 9. Todos os anos nos falávamos nos nossos aniversários, mesmo que fosse por mensagem no Whatsapp. Ela, sempre mais assídua que eu. Sua organização nas relações e cuidado com os amigos nunca me faltaram.

Adorava quando ela me ligava pra convidar: “Vem aqui, estamos gravando o novo álbum”. E eu ía, como criança atrás de doce, para receber inspirações e colaborar com uma nova letra. Lembro de num desses encontros ela me perguntar: “Sabia que meu nome quer dizer cipó? Foi meu pai que me deu”, confessava orgulhosa.

E foi por conta de um desses encontros que surgiu “Fumaça”, letra que escrevi a partir de suas fotos no Instagram e de sua fala sobre a atmosfera sexy de pegação na pista, que costurava o álbum. A maior e mais grata surpresa veio quando Liana e Luca me falaram que haviam convidado a dupla Tetine para colaborar na track. Alegria imensa, pois sou fã e acompanho Eliete e Bruno (os tetines) desde quando ainda moravam no Brasil.

Sempre que nos encontrávamos era um prazer. Liana com sua habilidade e despojamento em marcar encontros para jantarzinhos, longas conversas embaladas por vinho e sua polenta com shimeji e queijo azul espetacular, uma receita que temos aqui em casa no caderninho batizada de Polenta da Liana, sempre fazia virar festa. Vou até fazer uma polenta para celebrá-la.

Liana cantando na pistinha do Xingu.

Em 2018, nos encontramos no novo ateliê que ela e Lucas Freire, seu novo parceiro de música e de amor, ocupavam num galpão da Barra Funda, onde Zeca e Victor estavam também. Foi lá que realizamos a nossa Trama Afetiva daquele ano. Lembro de encontrar a dupla envolta em papéis e tintas pretas, criando grafismos incessantemente para cenografia de um show que, se não me falha a memória, foi realizado em parceria com o grupo G>E, coordenado por Karlla Girotto, outra grande amiga de grandes jornadas. Foi Karlla que me ligou avisando que Liana havia sido internada.

Aquele ano também foi marcante porque fiquei preocupado com sua saúde. Ligue pro Zeca e achamos um jeito sutil de chegar nela sem assustar a fera. Deu certo. Retribuímos cuidados.

Durante a pandemia, outro telefonema. Ela e Lucas Freire estavam preparando o novo álbum, “Sim”, e veio outro convite sobre uma possível colaboração. Escrevi “Pérola Suja”, pensando em nossa amiga Renata Bastos e no longo colar de pérolas gigantes da Swarovski, com o qual havia presenteado Liana e que ela passou a usar em muitas de suas apresentações, criando um visual que marca sua imagem em cena. Uma mulher de preto com pérolas. Muitas pérolas. A letra foi ponto de partida para um colaboração maior, que virou um clipe marcante feat. AZAGATCHA.

Aliás, pérolas, cristais e paetês em nossas vidas é uma herança direta das vivências artísticas no clubinho Xingu. Exatamente como Liana canta na letra homônima:

“Bijoux para todos
Champanhe, cristais e ouro
Pérolas, luzes, paetês, espelhos”

A letra faz uma citação amistosa sobre a videoperformance que realizei em 2003, batizada de “Paetês para as Massas”, vomitando paetês dourados. Luxo para todos era nosso lema subversivo. No Xingu era assim, a gente se misturava, se influenciava, cantava um na noite do outro. Lembro que ela amava cantar versos da Tati Quebra Barraco enquanto eu tocava uma base beeem longa de “Planet Rock”, do Africa Bambaataa. E quando lembrávamos disso às gargalhadas (ah o som de sua gargalhada rouca…) ela sempre frisava: “Éramos felizes e sabíamos”.

Luca Lauri e Liana Padilha nas picapes do Xingu.

Liana e seu dom de cuidar. Tem gente das gerações influenciadas por ela que a chama de mãe. E faz sentido, porque na intimidade ela sempre cuidava. E me dizia: “Você já foi atrás da grana dos direitos autorais das suas músicas? Vai lá no site, basta por o CPF que deve ter alguma graninha pra você”. Nunca fui. Ter as letras cantadas por ela já é o prêmio perfeito.

Quando soube que Liana estava internada, me apressei em marcar uma visita num horário que fosse conveniente para sua irmã Ana (um prazer gigante conhecê-la) e para seu grande amor Lucas.

E lá fomos nós, eu e Victor Correa, rumo ao hospital, naquela manhã quentíssima de sábado. Antes de irmos, disse pro Victor: “Bicha não vai de preto, hein? Bora levar leveza e alto-astral”. Eu fui todo de rosa, Victor colocou uma camiseta branca.

Foi uma despedida difícil, mas muito amorosa e importante. Beijei sua testa, fiz carinho na sua mão, sussurrei no seu ouvido: “Minha taurina querida, estou aqui pra dizer que te amo. Que esse momento seja iluminado como os palcos onde você construiu e viveu seu sonho de ser uma artista completa”.

Também abracei com muita emoção Lucas, dando pra ele um pequeno maço de pequenas penas de pavão colhidas por minha mãe, que tem uma criação solta de pavões no sertão do Ceará. Penas de pavão também marcaram nossos anos de clubinho Xingu e tenho na memória e no HD fotos de Liana cantando na pista com um maxi-pavão como pingente de um colar presenteado por Zeca e Victor.

E agradeci Lucas por ser um grande amor da vida dela, devolvendo para ela o amor e o cuidado que ela tinha dedicado integralmente ao seu outro grande amor, o Regis.

Liana é assim. Ele vem em loopings, exatamente como as palavras que se repetem incessantemente em seu jeito de cantar e que marcam seu estilo musical. Escute: “Danço, danço, danço”… "Adoro DJs, adoro, adoro, adoro"… “De novo, de novo, de novo”… Eternamente Liana. A estrela-cipó.

LIANA ETERNAMENTE BRILHANTE.

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